Sergio Mello nasceu em São Paulo, em 1977. É autor dos livros No Banheiro um Espelho Trincado (Ciência do Acidente, 2004); Inimigo em Testamento (Soul Kitchen Books, 2013) e Puma (Corsário-Satã, 2019). Como dramaturgo, escreveu mais de uma dezena de peças. Pela Aboio, publicou Socos na Parede & Outras peças (Ed. Aboio, 2023).
Escrita em 2012.
CENA 1
(Noite. Quarto improvisado com o mínimo: colchão de solteiro no chão, luminária, poucos livros, garrafa de água ao lado de um copo. Com roupa de dormir e uma das mãos enfaixada precariamente, homem entra carregando uma gaiola; nela, há um pássaro. Ele repousa o objeto no chão e o cobre com um pano qualquer.)
Voltar a morar com os pais, depois dos 40, até que não tem sido tão ruim… Tirando o fato de às vezes eu me pegar pensando em palavras cujo significado faz mais sentido na Bíblia do que no dicionário… Tipo culpa, perdão… É só eu deitar a cabeça no travesseiro que começa. O curioso é que é a palavra solta, desprendida de qualquer interpretação, e de um branco tão luminoso, suspensa, ali, naquela escuridão mais intensa de quando se acaba de fechar os olhos, que quase dá pra ouvir sua pronúncia. Aí eu fico esperando… A mudança de uma letra, o surgimento de uma segunda palavra, qualquer novidade que sirva de pista pro provável enigma, e nada. A palavra só vai se dissipando, aos poucos, sem nunca sumir por completo. Então eu adormeço… Mas eu tô me acostumando. É. Seja lá quantos passos pra trás isso signifique na minha idade, eu tô me acostumando. A sensação – sei que isso vai soar contraditório –, acredito que seja bem próxima da de alguém que amargou muito tempo na prisão no seu primeiro dia de liberdade. Apatia crônica facilmente confundida com alívio. Taí uma das imagens mais bonitas que eu tenho pra mim: o ex-detento parado em frente à penitenciária, sem saber por onde começar. Com o pouco que não permitiu que arrancassem dele, ou que não quiseram arrancar dele, numa sacola; sua vida toda numa sacola. Só esperando uma reação da cidade. Tipo uma garoa fina começar a cair, um cão deitar no seu pé, um soco no olho. Até constatar que nada virá e resolver seguir em frente. Um passo, depois outro. Desconfiado como um bicho que, depois de capturado e etiquetado, é devolvido à selva, que já se tornou estrangeira, porque isso acontece num curto tempo de ausência… Consegue enxergar o ângulo perigoso que tem a liberdade?
(Pausa.)
Preferi esse cômodo aqui nos fundos ao meu antigo quarto de solteiro. Acaba sendo independente da casa pelo quintal lá fora dividindo. Mais privacidade. O duro foi me livrar de toda a tralha que os velhos acumulavam aqui. Dois dias inteiros de faxina e lixo suficiente pra manter uma fogueira de 1 metro e 80 acesa por um bom tempo lá fora. Isso se a vizinhança não tivesse reclamado da fumaça na roupa do varal. Tive que pedir uma caçamba na prefeitura. E ainda assim deu pra encher até a boca… Velho é foda. Sente a morte se aproximar, fica mais sensível e acaba botando valor sentimental até no papel que usou pra limpar o rabo. Bom, mas pelo menos agora tá limpo aqui. Espaçoso. Um pouco mais fresco também. Só preciso dar um jeito nessa parede. Eu já imaginava que ela ia precisar de pintura e guardei as duas latas de branco gelo que tavam no meio daquela zona toda. Sobras dos tratos que o velho costumava dar na casa antes do Natal. Já tão vencidas, mas foda-se, não é pra beber mesmo…
Engraçado como hoje o velho caga pra esses reparos que precedem grandes datas. Antigamente ele não passava sem. Planejava com meses de antecedência e executava tudo cuidadosamente, com mãos pacientes de restaurador e nos olhos aquele êxtase peculiar que se atinge não no ápice, mas na iminência de uma atividade sádica. Ainda lembro dele pintando o teto. Cigarrinho no canto da boca. Eu embaixo só segurando a escada e tentando adivinhar o momento exato em que a cinza, já maior que o filtro, ia cair no meu rosto… O coitado só queria mostrar pra todo mundo que tinha tido um ano farto. Tão diferente de hoje. Apesar de ele ainda tá bem-disposto: bate o dominozinho dele no fim de semana, dá uma volta no quarteirão toda manhã abrindo e fechando as mãos. É, vai ver que é porque tudo vai perdendo a importância mesmo. A despeito dos mais bem intencionados dos esforços, mesmo em conjunto…
Tem uma hora, geralmente no fim do dia, que ele e a velha entram numa espécie de letargia. O mais estranho, eu já reparei, é que o start da coisa é comum aos dois, não importa a distância entre um e outro. Eles simplesmente são tomados por uma aura misteriosa e, sem interromper o que tão fazendo, um sorriso indecifrável brota na cara deles. Aquele sorrisinho discreto, mas com um certo deboche, sabe, que a gente só vê na boca dos sábios e dos defuntos… Às vezes eu me pergunto que tipo de coisa é essa capaz de preservar uma sintonia tão perfeita entre duas pessoas. Mesmo que elas não troquem sequer um bom dia. Há mais de 20 anos.
(Pausa.)
Ontem à noite, uma garota que cresceu comigo aqui no bairro veio me fazer uma visita. A Bia. Ela trouxe um vinho e a gente ficou relembrando alguns momentos bons. Aqueles momentos que a gente guarda dentro de uma pasta específica na cabeça e intitula de “Aquela Época”. E fica dizendo “aquela época” era foda, “aquela época” não volta mais, “aquela época” a gente era feliz sem se dar conta… Daí tocou “Ribbon in the sky” no rádio. Stevie Wonder tocando, copo com um vinho que tá mais comprometido com o teor alcoólico do que com a qualidade da uva… a gente acabou se abrindo um pro outro. Mas sem pose. Sem aquela pose de bem-sucedido que só faz sentido, ou melhor, só cola com quem não vê a gente há um bom tempo…
Ela me disse que optar pela casa dos pais depois de uma separação é sinal de que o subconsciente anda pedindo colo… Puta que pariu… Tentei explicar que a única coisa que anda precisando de colo por aqui nesse momento é o meu bolso, só por isso que eu voltei… mas daí a gente, a gente começou a foder. É, a foder daquele jeito que parece que os dois tão com muita sede. E quando termina fala que foi em nome dos velhos tempos. Bota a culpa nos velhos tempos porque tem vergonha de admitir que tá carente pra caralho. Como se a pele já não tivesse denunciado isso antes, crispando antes mesmo do toque da língua, só com o revezamento entre o frio da aspiração e o calor da expiração de uma boca quando tá bem perto…
Não sei o que é mais engraçado, ela ainda usar o mesmo perfume de quando era garota ou eu conseguir me lembrar disso depois de tantos anos… Mas ela me pareceu bem. É. Bom, pelo menos tá chegando aos 40 sem ter pirado… No fundo, ela é só mais uma dessas mulheres que, já sem muito apelo, acabam apelando, sabe como é? Essas que desenvolvem o poder de sacar quando o cara deu a sua noite por perdida. Tá cheio delas por aí. Elas tocam a campainha da gente, usando uma capa de chuva e segurando uma garrafa de vinho e fodeu… Ela dá aquela sibilada irritante no fim dos plurais, sabe? Professoral, mínima, mas dá. E o problema nem é esse. O problema mesmo foi que, hoje de manhã, logo que eu acordei, ela tava parada me olhando, tomei um puta susto. Sabe aquela expressão triunfal de mulher que acha que a vitória tá em descobrir que tá sendo traída, não em largar o traidor? Então… Era o papo de subconsciente pedindo colo. De novo. Disse que tinha me gravado com o celular durante a noite e que podia provar que eu tinha dormido em posição uterina e com os punhos cerrados com força.
(Pausa.)
A essa hora o bairro todo já deve tá sabendo. Não sei por que que eu fui me abrir com aquela… A Bia não ia aliviar, pra quê? Merda… Peraí, talvez todo mundo já tivesse sabendo antes. Vai ver a Bia já apareceu aqui sabendo de tudo. O que explica a vizinhança me olhando com um leve pesar desde que eu voltei pra essa casa. Aquele sorrisinho a meio mastro coberto por uma fina camada de cautela. É pena. Claro que é, só pode ser. Mas não é por nobreza, não. Eles devem ter zombado da minha situação antes, daí a culpa. Arrependimento fajuto pra ficar bem com a tal justiça divina, que eles não sabem nem de onde vem.
Os velhos. Claro. Só podem ter sido eles. Dá pra ver a velha blasfemando a sua ex-nora num raio de dez quilômetros daqui. Dia desses ouvi ela falando praquela rodinha de velhas que sempre se forma aqui na frente de manhã, depois que cada uma varre seu trecho de calçada, que (caricato) só se conhece realmente uma mulher quando o seu marido perde o emprego… E o velho? O que que ele já não deve ter dito aos seus colegas de dominó que, coincidentemente, são os pais dos caras que cresceram comigo? Claro que tá todo mundo sabendo. Só não tocaram no assunto diretamente comigo. Não fizeram isso, mas dá pra ver que todos dariam um dedo, a mão inteira até, pelo meu discurso vitimado… É, mas eu não vou expor o meu reto à visitação pública, não. Isso não vai acontecer. Nem fodendo.
(Pausa.)
Eu tinha uma vida tão legal, pô… Uma filha saudável… Sabia que quando ela nasceu e a enfermeira veio me apresentar ela, eu… eu dei um passo pra trás? É, eu fiz isso. Um passo pra trás, eu me afastei. Foi a única coisa que eu consegui fazer naquela hora… Aí a enfermeira – uma gordona, negra – arregalou bem os olhos, espantada com o meu gesto inesperado diante do amor – como se um cara lá no Japão fosse agir diferente de mim – e levou a minha filha de volta ao berçário… Mas depois ela voltou, com seus dois olhões, e me entregou um cartão. Um cartão com o telefone de um curso de pai. (Rindo.) Cê acredita que tem cursos por aí que ensinam o sujeito a ser pai?
(Pausa.)
Lembrei agora do dia em que o velho me levou pra pescar. A única vez que ele fez isso. Eu tinha o quê? Uns 6, 7 anos, acho. E eu não dormi na noite anterior. É, eu passei a noite toda em claro, pedindo pra Deus que se tivesse nos planos Dele me matar naquele fim de semana, que me esperasse voltar da pescaria. Só tô falando isso porque, quando a minha filha tava pra nascer, naquela madrugada de inverno, mais de trinta anos depois da tal pescaria, eu me peguei fazendo o mesmo: estalando os dedos com as mãos geladas e pedindo pra Ele mais uma vez, só mais uma única vez, não me tirar o direito de me maravilhar.
(Pausa curta.)
Eu só fui pegar ela no colo depois do terceiro mês. Medo daquela coisinha se desmanchar e vazar pelos vãos dos meus dedos. Tão pequenininha e cinzenta que a gente chama ela de Foca até hoje por causa disso, acabou ficando… Conforme ela foi crescendo, um otimismo foi brilhando cada vez mais forte naqueles olhinhos esbugalhados sempre lendo o meu rosto. Eu não precisei de ninguém me ensinando a estender, cada dia mais um pouco, a distância entre nós dois, só pra que ela tentasse chegar até mim com aqueles passinhos vacilantes e braços erguidos de quem atravessa um rio pela cintura. Ninguém precisa de alguém pra ensinar a amar a coisa mais valiosa da sua vida. Foi o que eu disse à enfermeira antes de rasgar aquele cartão idiota… A cada dia que passa, a minha filha tá mais linda e doce, esperta e veloz, um hálito celestial… Ela é o meu motivo. Ela sempre vai ser o meu motivo.
(Pausa.)
Eu tinha uma mulher também, claro… Alice… No início uma mulher graciosa e sensível. Nunca frágil. Com um dom quase sobrenatural de fazer qualquer camiseta de partido político cair como um vestido de festa no seu corpo lindo e real. E eu me casei com ela… Sabe, eu sinto falta das nossas conversas. Principalmente nas madrugadas em que o calor não deixava a gente dormir direito. A gente ficava conversando baixinho, com a luz apagada, olhando pro teto cheio daqueles adesivos luminosos em forma de estrela e meia-lua que ela trazia da papelaria. Fazendo pequenos planos que não comprometessem o nosso couro. Confessando coisas com uma franqueza que só é possível por escrito ou no escuro… Quantas noites a nossa insônia driblou o amor e a gente sentiu ele crescer feito um osso…
E quando o sono finalmente se aproximava, provocando aquelas risadas frouxas, eu me virava pro outro lado só pra sentir, sob o uivo uníssono e baldio dos cães da redondeza, os seus seios macios tocando as minhas costas. E se era ela que dava as costas pra mim, eu ficava só respirando aquele cheiro quente e gorduroso da sua cabeça. Seus cabelos fazendo cócegas no meu rosto toda vez que ela virava o travesseiro, buscando o lado mais frio da fronha… Daí ela emergia do sono pela última vez, antes de se afogar definitivamente nele, e isso acionava em mim uma espécie de perda. E o medo da solidão, mesmo que só por algumas horas, me dava uma ereção absurda e potente, a ponto da minha própria mão estranhar o tamanho do danado… E então eu fodia ela. Bem devagar. Rumo àquele orgasmo mentolado, típico da terceira ou quarta foda da noite, ao som dos primeiros pássaros do dia… Isso me bastava. Não só em noites assim, isso me bastava por uma vida toda…
É, eu tinha uma vida legal. Quer dizer, ainda tenho. Ainda tenho a minha filha, ela faz 4 anos na semana que vem. Tenho a minha mulher também, que só passou oficialmente a se chamar “mãe da minha filha”. Pelo menos no sentido da existência ainda tenho as duas. Não mais no sentido da convivência. Tampouco no do merecimento, eu acho.
(Pausa curta.)
Eu trocaria todas as pessoas que me amaram e ainda vão me amar nessa vida por uma só, só uma, que hoje me rejeita. (Deita-se. Desliga luminária. Blecaute.)
CENA 2
(Manhã. Homem se levanta, veste-se, descobre a gaiola e sai, carregando-a. Luz cai em resistência.)
CENA 3
(Noite. Com a mesma roupa de dormir, homem entra carregando a gaiola e a cobre.)
O pássaro. A velha perguntou se ele podia continuar passando as noites aqui nos fundos. Parece que algumas espécies são meio sensíveis a mudanças repentinas. Não vi problema nenhum, ele nunca canta. Quero mostrar ele pra Foca quando ela vier me visitar. Quero ver ela gargalhar de medo, enfiando o dedo na gaiola e tirando depressa.
(Pausa.)
Pensando bem, acho que vai ser bom pra ela crescer longe daqui… Não, quem disse longe de mim? Eu não disse longe de mim, eu disse longe daqui; longe daqui, não de mim… Embora não tenha sido exatamente um playground que eu tinha em mente como cenário pra isso. Eu queria a minha filha crescendo solta. Tipo correndo na estepe, sabe como é? Suas vistas alcançando tudo o que é humanamente possível. E que esse tudo soasse a ela não só como uma possibilidade, mas como uma promessa. Sem muros. Nem crianças assustadas transferindo a ela as doses diárias de medo que recebem dos seus pais que, por preguiça de levantarem o rabo da cadeira pra tirarem elas da beira de um poço, inventam monstros horrendos ali, só pra que elas voltem correndo pra suas bainhas como bumerangues… Só a liberdade ia preparar ela pra quando outra garotinha tentasse tomar a sua merendeira na escola. Pra quando um homem tentasse passar ela pra trás lá na frente…
Foi por isso que eu propus à Alice, quase no fim da gravidez, entregar o apartamento que a gente morava e alugar uma casa de bairro, térrea e com quintal, pra facilitar tudo. Acabei achando uma aqui perto dos meus pais mesmo, a duas quadras daqui. E deixei tudo pronto pra nós três irmos da maternidade direto pra casa nova. A Alice tinha relutado um pouco no início. Detestava a possibilidade de fazer qualquer refeição com os velhos; não entendia a falta de louças intermediárias entre a panela e o prato, dizia que eles comiam como porcos.
Mas aos poucos ela foi cedendo aos meus argumentos de que o convívio com os avós ia ser bom pra menina, sempre ia ter gente de confiança com quem deixar ela quando a gente quisesse, sei lá, ir ao cinema, jantar fora, não confio em babás; depois de um tempo eu ia até poder levar ela pra escola de manhã, de pijama e com os cabelos desgrenhados, método Nick Nolte de dizer às outras crianças “Não se metam com ela!” (Ri. Depois segue sério.) E tinha mais uma coisa, uma coisa minha… Depois de tanto tempo morando num apartamento alugado de um endereço charmosamente neutro no outro lado da cidade, eu queria me reconciliar com o bairro que me viu crescer. É, esse era o meu projeto secreto… Tá OK, vai, na verdade, assim como o velho sempre quis mostrar que tava tudo bem por meio de uma casa cheirando à tinta fresca na noite de Natal, eu queria esfregar na cara de todo mundo nesse maldito celeiro de fofoqueiros e fracassados que eu tinha prosperado, que eu tinha – sob a visão deles, é claro, e só sob a visão deles – vencido.
(Pausa curta.)
Eu só queria que todo mundo visse que aquele garoto que passava as tardes atirando pedras nos trens ou praticando furtos – que iam desde o grão de sal grosso que encobre o bacalhau na seção de pescados do supermercado, pra excitar a língua, até a cota mensal de vale-transporte de uma empresa inteira, com a conivência, é claro, de um office-boy conhecido pedindo pra não exagerar no soco na hora do olho roxo que seria apresentado ao seu patrão, pra forjar o assalto –, aquele garoto, ele não tinha se perdido no caminho… Apesar de ter cogitado tantas vezes um mergulho definitivo na piscina de ácido que tinha nos fundos da velha fábrica de peças pra aviões, aquele garoto, eu, eu segui um rumo comum. Dá pra entender?
(Pausa curta. Enquanto enche um copo de água.)
Quando eu voltei pro bairro com a minha família, não demorou muito pra eu constatar que as coisas tinham mudado um pouco. As casas tinham se deteriorado como a boca dos seus inquilinos. Tinham um aspecto desencorajador de abandono, sabe, potencializado por fachadas escurecidas. Era como se sempre tivesse acabado de chover, entende? Até o cenário da minha infância, a velha fábrica de peças pra aviões, tinha sido desativada, parece que por uma denúncia de contaminação do solo ou algo assim (toma toda a água do copo), que nunca se deram ao trabalho de comprovar ou desmentir.
O fato é que eu não reconhecia mais o bairro. Todos os meus amigos de infância tinham ido embora. Quer dizer, de vez em quando eles até dão as caras. Eleições, quase nunca no Natal – provavelmente depois de suas mulheres implorarem de joelhos. Mas não pra uma confraternização familiar, e sim pra disputar quem é que tem o carro mais caro ainda em nome da porra do leasing… E quando isso acontece, eles já não me despertam sequer um motivo honesto pra uma reaproximação, sabe… A não ser o Luís – o panaca. Que ironicamente não tinha sido um amigo no passado, e sim um alvo. Assim que eu cheguei, ele tava lá – o único –, mofando nos fundos da oficina mecânica às moscas herdada do pai dele, mesma posição de quando eu fui embora… E eu reconheci aquilo. De imediato. Como única relíquia, embora fossilizada, de uma época quase feliz… O único aqui que ainda me inspirava uma certa fidelidade a um tempo que eu tinha vontade de revisitar. E que, levado por um saudosismo idiota, eu esperava encontrar intacto depois de tantos anos.
(Pausa.)
Uma vez, a gente era moleque, eu caguei num papel de presente, fiz um laço caprichado e coloquei bem em frente à oficina mecânica do pai dele, que ainda era vivo. Daí eu e meus amigos ficamos só olhando de longe, esperando. (Rindo.) Cara, não deu nem tempo de o Luís desfazer o laço: os dedos dele romperam o papel úmido assim que ele tocou no presentinho…
Mas o melhor trote mesmo veio depois, arquitetado por um amigo meu, o Marcelo. Eu fui até a oficina e disse pro Luís que eu tinha brigado com o Marcelo, tudo mentira, e que tinha sido do cu dele que tinha saído o recheio do tal presente. Então perguntei se ele tava a fim de me ajudar a sacanear o cara. Ele aceitou, claro. Meio desconfiado, mas aceitou. No fundo ele tava apostando nas mudanças que poderiam vir de uma boa revidada. Tipo ser esquecido por nós ou se tornar um de nós, por que não? “É só chegar no Marcelo e perguntar como é que o pai dele pulou o último carnaval. Baba.” Assim que ele encontrou o Marcelo, acho que no dia seguinte, não deu outra: “Aí, Marcelo, conta pra gente como foi que o seu pai pulou o último carnaval.” (Gargalhando.) O filho da puta do Marcelo era tão bom, mas tão bom, que seus olhos se encheram d’água na hora. (Vitimado.) “Pô, cara, isso não se faz. Ele acabou de amputar uma perna por causa de umas complicações do diabetes.” (Volta a gargalhar.) O coitado do Luís só não fez morrer. Passou semanas trancado em casa com a pedra da culpa pesando sobre o peito, não aparecia nem pra ajudar o pai na oficina, diziam até que chegou a adoecer, o panaca. (Ápice da gargalhada, que vai se dissipando aos poucos. Já recomposto.) Panaca… Panacas éramos nós, isso sim.
(Pausa.)
Apesar da sua baixa estatura, assim que eu cheguei, notei que os anos deram a ele uma certa imponência. Nada a ver com nobreza. Força física, talvez, representada por músculos bem destacados e pétreos que pareciam ter sido esculpidos por um esforço misterioso, além do que a oficina mecânica exigiu dele desde muito cedo. Era como se ele tivesse se empenhado, a partir da adolescência, quando todos nós deixamos de implicar com ele e começamos a migrar, em compensar o seu um metro e cinquenta e bem poucos de altura, numa tentativa de desencorajar novos perseguidores na idade adulta…
E, aos poucos, a gente foi se reaproximando. Ou se aproximando pela primeira vez de fato. Como dois irmãos que se conhecem depois de adultos: mesmo sangue, dois tons de vermelho… Ele começou a frequentar a minha casa. Jantava com a gente quase todo fim de semana. Depois a gente jogava pôquer, bebia, dava umas boas risadas. Apesar de ele morar a apenas três casas da minha, era comum ele desabar algumas noites no sofá, completamente bêbado. A gente também relembrava algumas histórias. Principalmente pra Alice. Mas sem jamais fazer uma alusão sequer, embora a idade adulta permita olhar pro fato mais aterrador da infância com um certo humor, a nada do passado que pudesse diminuir ele… E assim ele foi se tornando o meu melhor amigo. A ponto de, quando a Alice tava a fim de sair, eu confiar a ele a minha filha, nem recorria mais aos meus velhos. Cara, eu jamais vou esquecer da cara dele no dia do convite pra ser padrinho da Foca. Eu nunca vi alguém tão feliz. Ele chorava como um garotinho. Um garotinho sentindo soprar no rosto pela primeira vez a leve e aprazível brisa do merecimento.
(Pausa curta.)
Um tempo atrás, tomando uma cerveja com ele num bar, aproveitei algumas camadas da geleira derretidas pelo álcool e toquei no assunto. Perguntei por que que ele deixava a gente zombar tanto dele quando a gente era moleque… O lugar não é exatamente um bar. É mais uma dessas mercearias confusas improvisadas em garagens, dessas que se proliferam nos subúrbios. Em que uma dona de casa, tentando pesar a mistura do jantar, é atingida no baço pelo taco de bilhar de um sujeito que, já meio bêbado, nem se deu ao trabalho de olhar pra trás antes da tacada. Às vezes, até calha de ser o próprio marido dela o autor da grosseria, que só tá ali enchendo a cara pra conseguir voltar pra (hesita, comedido)… casa… depois de um dia cheio. (Pausa curta.) Óbvio que conseguir voltar pra casa não significa completar um itinerário. (Pausa curta.) Eu tô falando de uma espécie de anestésico pra suportar, sem assombramento, apesar da familiaridade erguida por anos ou décadas, os objetos mais felpudos de um lar te saudando com garras e presas horrendas. (Pausa curta.) Porque é assim que é. A verdade é uma só. (Pausa curta.) Eu acabei de sair de um casamento de dez anos, pô. Eu sei do que eu tô falando. Apesar desse quase nada de luminosidade que ainda me resta de uma juventude vista de relance, eu sei que nessa porra de barquinho precário remado com as mãos chamado intimidade só se chega a um lugar: à repugnância. (Pausa curta.) Que que eu tô falando, meu Deus? Que merda é essa que eu tô dizendo? Não era isso que eu queria dizer… Acho que eu tô um pouco cansado, já é tarde, eu… O Luís só não queria machucar nenhum de nós, era isso que eu queria dizer, porque foi exatamente isso que ele me disse naquele bar. Por isso que ele nunca revidou à nossa perseguição diária naquela época. Porque nunca tinha um adulto por perto que pudesse fazê-lo parar, caso ele resolvesse dar a primeira.
(Pausa longa.)
Uma noite eu cheguei do trabalho, eu tava muito cansado, e ele tava preparando a mamadeira da Foca… Naquela noite eu tinha ouvido um troço horrível no rádio do carro, sobre uma mulher num ônibus lotado que tava com seu bebê nos braços e por isso não conseguia pegar o dinheiro da passagem dentro da bolsa… Com uma das mãos o Luís segurava a minha filha dormindo e com a outra mexia o leite no fogo pra não empelotar… Um sujeito no ônibus se ofereceu àquela mãe pra segurar o seu bebê, era uma menina, pra que ela pudesse encontrar o dinheiro da passagem na bolsa… (Arremeda Luís.) “Cara, você não vai acreditar”, o Luís me saudou num tom elevado e feliz, depois deu aquela encolhida de ombros com uma frisada de rosto de quem admite uma gafe, sabe, e depois prosseguiu, sussurrando da forma adequada numa casa com criança dormindo: “Cê não vai acreditar: a Foca falou. É, hoje à tarde a sua filha falou pela primeira vez. Ela olhou pra Alice e disse sabe o quê? ‘Mamã’”… E quando a mulher do ônibus foi trocar a sua filha, já em casa, percebeu que o estranho tinha feito mais do que uma simples gentileza. Com o dedo. A vagina da criança tava sangrando.
(Pausa. À plateia.)
Não, isso não… Peraí, aí não. Eu sei o que vocês… O Luís não ia… Ele não era nenhum pervertido sujo desses, que isso? Ele sempre ficava sozinho com a minha filha, porra, quando eu saía com a Alice… Não, não, claro que não. Disso eu tenho certeza. Eu só cheguei cansado do trabalho naquela noite, cabeça quente. Ciúme meu. É, ciúme meu, foi isso. Eu sempre fui um cara ciumento. Ciúme de pai ausente numa hora tão importante. E ciúme, sabe como é, embaralha o raciocínio da gente. Não, ele não ia. Ele não. (Pausa curta. Desabafa.) A única coisa que eu tenho na porra dessa minha vida… O meu bebezinho, caralho. Dá pra vocês pararem de me olhar assim?… (Pausa. Em tom elevado, firme, revivendo o passado.) “Me dá a minha filha aqui”… Acho que eu soltei um “seu merda” no final, não lembro direito. E ele resistiu. É, eu notei que ele resistiu. Mas não porque não queria me entregar a minha filha. Não, foi só o tempo de sentir firmeza no passe, de se assegurar que se soltasse ela, ela não ia resvalar entre nós dois, só isso… Depois ele continuou a girar a colher lá no leite, sem notar que já transbordava da panela, avermelhando a chama e fazendo chiar a boca do fogão. Naturalidade forçada de quem tá evitando um embate, provavelmente tentando ignorar na cabeça dele o que podia tá passando na minha… Ele só ficou lá, parado, olhando praquele líquido branco derramando da panela. Como se velasse um caixão.
(Pausa.)
Eu apertei tanto a minha filha nos braços, com tanta força, que ela acabou acordando e começou a chorar. Mas ela fez isso só por alguns minutos, depois voltou a dormir… “A Alice, onde é que ela tá?”… Ele disse que ela tinha acabado de sair do banho e tava no quarto se vestindo… E de fato ela tava, sim. O problema foi que eu não precisei abrir a porta pra constatar isso.
(Pausa. À plateia.)
Deu pra perceber? Hein? Deu pra perceber que alguma coisa tinha acontecido ali. Na minha própria casa, porra… Eu podia sentir o ar grosso e sujo, como o de um cassino clandestino. As risadas, provavelmente da minha cara, ainda pairavam pelos cantos. E aquela puta do caralho ainda tirou a minha filha de mim. A minha vida, porra. O meu bebezinho. Tudo o que eu tenho. Aquela vaca dissimulada tirou a minha filha de mim, levou embora…
Nada de agressão física. É. Qualquer espécie de alívio seria um desperdício. Eu precisava poupar a minha raiva, eu precisava dela acumulada e quente. Então eu coloquei a Foca na cama, ensanduichei ela com dois travesseiros, e quando a Alice terminou de esfregar um anti o caralho a quatro naquela cara que, a partir daquela noite, nem precisa dizer que passou a ter um aspecto amadeirado pra mim, até que toda aquela gosma branca fosse completamente absorvida pela pele do rosto dela em movimentos circulares, e depois que ela se vestiu, eu mandei ela ir pra cozinha e me esperar lá com o Luís… Ela obedeceu, claro. Tentou questionar, mas logo obedeceu. E os dois ficaram lá, me aguardando como funcionários na sala do chefe. (Pausa curta. Grita.) “Eu sou o rei nessa porra aqui… tá entendido?” “Eu sou o rei nessa porra. Eu, tá entendido?” (Pausa curta.) Depois eu dei um chute na mesa, que era pra ter virado, mas só acabou ferrando o peito do meu pé. E eles ficaram lá, parados, olhando pra mim… Não disseram sequer uma palavra.
(Pausa.)
Sabe, às vezes eu me pergunto quando foi que tudo começou a ruir… Honestamente? Eu queria saber… A palavra errada, o gesto truncado ou a falta das duas coisas que fez com que eu passasse a ter que me pendurar nos pensamentos dela, me esforçando o máximo pra conferir, como do outro lado de um muro, se o assento que antes me era reservado já tinha sido ocupado por outro. O momento exato em que as coisas perderam a importância… Exatamente como aconteceu com meus pais, há mais de 20 anos, também de forma tardia… Porque quando se é mais jovem essas guinadas são completamente compreensíveis, naturais até. Mas depois de uma certa idade, depois de estabelecida uma rota, tudo o que se espera são trilhos a perder de vista, com direito àquelas casinhas perdidas no meio do nada, entre uma cidadezinha e outra, que a gente vê quando viaja de trem pra bem longe e fica se perguntando: “Como é que eles fazem pra sobreviver ali?” “Onde é que eles compram comida?”… Por que que esse troço que a gente chama de tempo só me permitiu constatar toda a devastação gradual quando já era tarde demais? E é isso que me deixa mais puto, porque foi gradual a porra do negócio… Por que que é sempre assim, hein? E eu não tô falando só da minha mulher com o Luís, não. Eu tô falando de tudo. A gente se envolve numa briga, crente que o soco tá com a mesma potência que da última vez que precisou dele mais novo e se fode. Por quê? Só porque não tinha ali na hora a porra de uma fotografia antiga pra dizer “Ei, meu camarada, você envelheceu”? Só por isso?… Por que que a gente precisa olhar pra uma foto antiga pra constatar isso se já sabe que vai ficar tentando se enganar, se convencer de que a cara tá melhor agora? E não tá, porra nenhuma, o caralho que tá, nunca tá… A gente só se acostumou… E o tempo – o maior e mais asqueroso de todos os roedores, esse ratão velho e gordo – nem sequer pra ter dado um toque, um sinal, um sintoma, enquanto a merda toda ainda tava no início. Ou no meio, que fosse, foda-se, só pra gente conseguir colar, amarrar um barbante, evitar, retardar, neutralizar de alguma forma… O momento exato em que alguma coisa arrebentou e tudo perdeu a importância. As palavras se tornaram ocas, os olhos passaram a desviar. Perderam o brilho, a transparência e passaram a desviar, desviar, desviar, desviar o tempo todo… É foda… E quando a gente se dá conta, já era. Tá tudo irreversivelmente perdido. (Pausa. Num rompante, começa a se vestir.) Quer saber?… Quer saber? Eu devia era ter matado ele. Naquela noite… Eu devia era ter dado um tiro na cara daquele filho da puta. (Sai. Luz cai.)
CENA 4
(Madrugada. Ele chega bêbado da rua e fica perambulando, cambaleante, pelo cenário.)
Essa… essa faixa… de gaza… entre a minha… entre a minha boca… e a sua… Uma faixa… de gaza… Tem uma faixa de gaza… entre a minha boca… entre a minha boca e a sua boca… Por quê?… Por que… essa faixa de gaza entre a minha boca e a sua? (Começa a gargalhar tanto que precisa se escorar em algo. Após alguns instantes, riso se transforma em comoção.) Ah, meu Deus… Ah, meu Deus… (Como se fosse vomitar, ele avança em direção à cama, deita-se, enterra o rosto no travesseiro e chora compulsivamente. Luz cai.)
CENA 5
(Dia. Ele entra, nervoso, segurando um cartaz com o anúncio de “VENDE-SE GELADINHO” e mostra à plateia.)
Que que a velha tá querendo com isso? Hein? Me humilhar? Não, só pode ser. E se a minha filha chega e vê essa merda pendurada lá fora no portão? O que que ela vai pensar do pai dela? (Arremeda sua mãe.) “O estádio que vai servir de abertura à próxima Copa do Mundo, meu filho, tá sendo construído aqui do lado, não é uma benção? Agora a gente só precisa pensar numa maneira de tirar proveito disso, você não acha?” (Penalizado, para si.) “Mas desse jeito, mãe? Desse jeito?” (Rasga o cartaz. Pausa curta.)
Outro dia eu li numa revista que fizeram uma pesquisa pra saber qual o McDonald’s que mais vende Big Macs no mundo todo. Adivinha? O daqui do bairro, vai entender… O que que isso quer dizer? Nada. Absolutamente nada… A gente tá esquecido aqui, isso sim. Nesse cu. A gente não sabe nem se é limpa a água que a gente bebe nesse cu, o solo pode tá contaminado. Se o mapa de São Paulo tivesse o formato de um cão, esse lugar certamente seria o cu dele, taria localizado bem ali, no cu do animal. (Alguém bate à porta. Ele grita.) Velha, vê se me esquece, vai. (Batidas insistem.) Depois, velha. Porra. Não tá vendo que eu tô batendo uma punheta agora? (Esfrega o rosto e bufa. Pausa curta. Para si, com pesar.) Não tá vendo que ontem fez um mês que o Luís tá morto?
(Pausa longa.)
Eu comecei cheirando as calcinhas da Alice… Não dizem que o ciúme é um sentimento primitivo? (Fareja o ar como Hannibal Lecter.) Pra mim, tá mais pra uma explosão no fundo do mar. Começa aqui, na região do estômago, e segue ardendo pelo corpo, perdendo a intensidade conforme vai avançando pelo resto do corpo, até as extremidades. Exatamente como um choque ou um raio de onda sonora que se propaga de uma explosão no fundo do mar.
Depois eu parti pra todas essas obviedades juvenis: vasculhava chamadas feitas e recebidas no celular. Só que lia cada torpedo umas vinte, trezentas, mil vezes em busca de alguma cifra. Pois é, um marmanjo como eu, um sujeito na minha idade… Depois de um tempo eu não via mais a hora de voltar do trabalho pra investigar a pilha de contas telefônicas que eu tinha juntado; histórico, claro, coincidindo com o dia e a hora em que o Luís botou os malditos solados lá em casa.
Nos dias mais difíceis, e eles sempre vinham, era só eu deixar toda a minha vulnerabilidade transparecer numa cara de coitado. Isso dava um peso clínico às desculpas que eu inventava ao meu chefe, pra conseguir sair mais cedo. No início até que dava certo. Mas depois de um tempo, e dos últimos pedidos negados, eu simplesmente ia embora, não tava nem aí, abandonava tudo, muitas vezes antes mesmo da hora do almoço, não dava satisfações a ninguém nem nada… Logo, eu não tinha mais um trabalho, um emprego de onde voltar todas as noites. E o mais engraçado é que ainda assim eu conseguia enxergar um lado, digamos, bom nisso. Ah, perdi o emprego? Foda-se, mais tempo pra me dedicar ao meu novo hobby, o de moer fantasmas…
Pros meus velhos, que ainda devem tá morrendo de pena de mim, o filho deles rodou num corte de funcionários. A velha deve tá agora mesmo lá na frente assando um bolo de fubá com erva-doce, passando um café e abanando com uma tampa de panela o cheiro acolhedor de cozinha em atividades aqui pros fundos, pra ver se me passa um pouco de… colo… Por enquanto, eles tão me agradando, mas daqui a pouco, ao analisar o histórico de baixo peso dos meus bolsos, eu sei que toda essa gentileza vai se transformar em decepção. Porque família gosta mesmo é de dinheiro. Dinheiro, é disso que aqueles dois lá gostam. E, assim como toda a vizinhança, daqui a um curto espaço de tempo, eles também vão começar a me olhar desapontados, como pra um rojão que falhou. Daí virão o incômodo, pela minha presença, o desprezo, depois a raiva.
(Pausa.)
Quando a companhia telefônica me enviou a segunda via das contas que já tinham ido pro lixo, de velhas – algo me dizia que era nelas que eu ia achar o que eu tava procurando, pela quantidade de chamadas repetidas ou pela longa permanência com um único número –, eu me tranquei no porão de casa, da antiga casa, e aos poucos fui me transformando num sujeito subterrâneo… Não por me refugiar a maior parte do dia e da noite no subsolo, num porão úmido e mal ventilado, mas por ter encontrado a cópia fiel desse lugar, só que dentro de mim, entende? Não na carne, na alma… Até as brincadeiras com a Foca foram ficando cada vez mais esparsas, cada vez mais esparsas até se tornarem raras. E eu lá, naquele porão, como um idiota, descendo a régua pela coluna de ligações daquelas malditas contas telefônicas, e quando os números iniciais batiam com os do Luís – eu não era sequer capaz de me certificar dos números finais –, era preciso pressionar a régua bem forte no papel, como se tivesse cola pra secar ali, porque as minhas mãos começavam a tremer, elas tremiam muito, e meu coração, ele disparava, socando a minha caixa torácica como um chimpanzé estressado numa jaula, e eu tinha que (faz o que está dizendo) erguer a cabeça muitas vezes, assim, fechando os olhos, pra tentar sugar um pouco do ar que ia ficando cada vez mais (ofegante)… cada vez mais… espesso e eu precisava… eu precisava… respirar, eu… preciso, eu preciso respirar… um pouco… Só um pouco agora.
(Pausa longa.)
Ridículo, né?… É, eu sei que é… No fundo eu sempre soube. (Pausa curta. À plateia.) Quer saber? Eu nunca soube de nada. Eu nunca soube de porra nenhuma. Ridículo é o caralho. Tá legal? Pode parecer ridículo pra espíritos evoluídos como os de vocês todos aqui, pra mim não… Vem cá, cês já pensaram em ir morar no Nepal?
(Pausa.)
Até o seu prato predileto deixa de fazer sentido ao paladar se não for encarado como uma pista. Do tipo “Ela só preparou carne moída com cenouras hoje porque o canalha, o filho de uma puta ficou de vir jantar aqui em casa”. Porque esse troço, o ciúme, ele é cruel. Muito cruel. Ele vai te envolvendo de tal forma que, quando cê menos espera, tá puxando um fio de pesca interminável que, se você desiste, jamais vai saber o tamanho do peixe que conseguiu fisgar. E a graça da pescaria qual é? Não tá justamente em saber o tamanho do peixe que cê conseguiu pegar? (Pausa curta. Para si, novamente sobre a plateia.) Espíritos evoluídos… Aí já virou um vício. É. Com toda a perda de massa encefálica, de dignidade, com todo o embotamento peculiar, uma… doença. É, uma doença.
Eu disse que tudo começa no estômago, mas tá tudo aqui, ó. Tá tudo aqui, na cabeça da gente. E cê só espera, a cada novo giro no molinete, conseguir ver a silhueta não mais do peixe, e sim do demônio embaixo d’água. Cê não vê a hora de olhar pros seus olhos negros bem abertos… Se as contas telefônicas não te serviram de nada, não te deram prova alguma, você parte pro computador. Cê quer ver o histórico de navegação dela, ler os e-mails dela, mas tem uma senha, a porra de uma senha que te impede de fazer isso. E logo cê descobre que há uns programinhas disponíveis na internet que, por combinação de caracteres, podem quebrar essa senha, rodando letras e números num mostrador, como essas combinações de cadeados de segredo. Mas isso pode levar semanas, meses, anos até chegar à combinação exata. Daí você cava outros meios, descobre novos programas espiões que te mostram tudo o que ela digitou, sem que ela percebesse que o troço tava ali rodando silenciosamente e registrando todos os passos dela… enquanto ela digitava o nome científico da merda de uma planta ou, sei lá, a porra de uma receita de suflê de abobrinha…
Você banca o detetive o tempo todo, o tempo todo, mas sem o charme de um detetive, tampouco sua inteligência e lógica. No fundo cê tem consciência disso, mas não admite. Cê fica o tempo todo de plantão, em estado de alerta, é um inferno. Refaz pequenas cenas, as mais prosaicas, de quando o Luís teve lá em casa, só que pelo róseo ponto de vista da malícia. Noites e noites esfregando os cantos do único vidro baço através do qual é possível visitar o passado. Atrás de um gesto, uma palavra, só que numa modulação suspeita, entende? Uma entonação diferente. Não faz outra coisa, não consegue fazer outra coisa que não tentar precisar o tamanho do tal peixe, do tal demônio preso na sua linha de pesca interminável, seja pela força muscular que se imprime pra puxar ele ou, o que é muito pior, pelo tamanho que você acha que ele tem, que você acredita que ele tem…
Tarde demais, meu chapa… Porque nessa hora o seu ciúme, a doença, já se espalhou, contaminando até o passado dela, manchou até a infância dela. Tarde demais… E de repente cê se pega no cerne da madrugada desamassando papelzinho de fundo de caixa de tranqueiras, vasculhando fotos antigas, de antigos namorados, pra ver se o sorriso dela era mais iluminado do que nas fotos em que ela tá contigo… Dá um Google no nome desses ex todos, um bando de babacas todos eles, e começa a pesquisar sobre suas vidinhas medíocres, seus nós de gravata tortos em fotos de LinkedIn… Daí cê começa a persegui-los. É. E descobre que um deles dá uma volta no quarteirão com seu Golden Retriever todo dia às oito, e que o outro bebe demais e para o carro pra travestis depois que sai de um desses bares da moda, desses que costumam comemorar o dia de São Patrício… Você faz isso até que algum deles um dia chame a polícia ou te aponte uma arma bem no meio das fuças e te faça cometer o ato ridículo de perguntar… (Extremamente manso e doce.) “Foi você que deixou a Alice ou foi ela que te deixou?”… Puta que pariu. Puta que pariu.
(Pausa curta.)
Aí chega a hora em que cê é vencido pela exaustão… Cê fica cansado, o cérebro, ele fica moído pra caralho. De tanto fabricar as verdades que não foram entregues pelos olhos – porque quando os olhos não registram, o cérebro tem mais trabalho pra fabricar todas essas verdades impostas. E cê não dorme, mesmo cansado pra caralho, cê não consegue. Mesmo ao fim de mais um dia sem encontrar absolutamente porra nenhuma…
E em vez disso te trazer algum alento, só te revolta ainda mais, te esgota ainda mais. Mesmo sem ter nada de concreto, uma certeza, uma pista que não se esfarele como um caroço de terra à menor tentativa de toque, é sempre inevitável e cada vez maior a sensação de derrota… Principalmente quando eu encostava a cabeça no travesseiro. E ficava imaginando como teria sido o começo. É, sempre foi o começo que mais me perturbou; me perturbou não, me aterrorizou, mais do que qualquer outra coisa. Quem teria se precipitado, quem teria cedido. Se ele roçou intencionalmente os dedos dela ao pegar uma xícara de café da sua mão. Se ela lançou a ele aquele olhar sonolento, como o de quem limpa os ouvidos, que, pra mim, sempre foi o auge da entrega… Se alguma vez ela… Puta que pariu… Se alguma vez ela gozou chorando com ele.
(Pausa curta.)
Foi aí que eu comecei a culpar a Alice. Por ela ter planejado tudo tão bem a ponto de não deixar nem um fio solto. Foi aí que eu passei a humilhar ela… Eu humilhava ela desde a hora em que eu acordava, quando mergulhava sua escova de dentes no vaso sanitário, depois de turvar a água com a urina mais concentrada do dia, até a hora em que eu ia dormir, quando eu rejeitava ela na cama, trocando seu corpo quente como o inferno por uma punheta tristonha, em pé, no chão frio do banheiro; gozando na cueca só pra que ela notasse na hora de colocar a roupa na máquina de lavar, no dia seguinte, e se sentisse uma merda de uma incompetente ainda maior…
Eu humilhei tanto ela. Como eu humilhei, Meu Deus, aquela mulher. Enquanto ela resistia, firme (arremeda Alice): “Quando você não tava aqui, quando você tava no trabalho, era de você que a gente falava. Você sempre teve aqui, não só nas nossas conversas, você estava presente.” (Contendo o grito entre os dentes.) “Eu não acredito nessa porra. É tudo mentira.” (Volta a arremedá-la) “Eu te amo. Pelo amor de Deus, eu te amo. Eu não gosto quando você faz essa cara de louco, quando você fica com esses olhos injetados de Maiakovski. Pelo amor de Deus, pelo amor da nossa filha, não faz isso com a gente.” (Contendo o grito entre os dentes.) “Você já me transformou num cara suscetível e resmungão, não queira me transformar agora num sujeito violento, sua cínica de merda”. (Pausa curta.) Até que numa tarde de sábado, abril. Dia 9 de abril, um sábado, ela conseguiu… Eu segurei o pescoço dela. É, eu apertei a garganta dela bem assim e ergui ela um pouco… Ela ficou se debatendo por alguns instantes, como se quisesse correr no ar, sabe?… Suas orelhas transparentes contra a luz, contornadas por uma penugem branca… Aí ela foi ficando meio mole, mais pesada… Só então eu soltei ela no chão. Ela caiu como uma roupa vazia… Eu fiquei desesperado, óbvio que eu fiquei. Eu fiquei desesperado pra caralho, com o cu não mão. Pensei que ela tinha morrido, ela não voltava. Eu tentava reanimar ela, mas ela não voltava, não voltava, não voltava… E então eu disse o quanto eu amava ela, sussurrei na orelha dela o quanto ela era importante pra mim, depois gritei bem lá dentro, ela não voltava. Eu… eu fui o sujeito mais doce de todo o mundo, mais doce, naqueles poucos minutos, naqueles poucos minutos em que ela teve inconsciente.
(Pausa.)
Depois de tanto tempo procurando sem encontrar nada que ligasse a Alice ao Luís, eu já tão cansado de tudo, chegou uma hora em que eu até já tinha me esquecido… o que eu tava procurando. Isso já não era mais importante… Eu nem sabia mais em busca do que que eu tava. “Que que eu tô procurando mesmo?”… Independente do que fosse, o fato é que eu nunca consegui promover uma pista à categoria de prova, nunca… Foi aí que eu… eu resolvi trazer o Luís de volta… É, eu fui atrás dele… pra me desculpar pela confusão na última noite em que ele teve lá em casa e principalmente pra tentar trazer ele de volta. E assim conseguir com que os dois, próximos novamente, me dessem o que eu até então não tinha encontrado… (Encabulado e terno.) “Volta, cara…” “Tem cerveja na geladeira…” “Vamos lá jogar pôquer. Ficha de madrepérola é outra coisa, bem diferente de feijão…” E ele ficava me olhando, segurando a porta. Metade do rosto atrás da porta, desconfiado. Aquele mesmo olhar à espera de um trote, de quando a gente era moleque… “A Alice pediu pra eu vir te buscar…” “Mas eu já tava pra vir, mesmo se ela não…” “Ela tá esperando a gente. Ela tá esperando você.” (Pausa.) “Nunca aconteceu nada”, ele disse, ele disse de repente… “Eu sempre respeitei a sua família…” (Grito entre os dentes.) “Mas não devia, porra. Não devia ter respeitado nada. Devia ter feito o que tinha que ser feito, caralho. O que qualquer outro homem no seu lugar teria feito” (Pausa. Doce.) “A Foca, talvez a gente precise viajar, ficar fora uns quatro ou cinco dias e não tem ninguém com quem deixar ela…” “Cê precisa ver como ela fica linda com um biquíni que a Alice comprou pra ela, todo coloridinho.” (Pausa curta. Ajoelha-se e chora num desabafo.) “Então vê se faz esse troço parar, cara. Pelo amor de Deus, faz esse troço parar… Senão eu vou enlouquecer. Eu não aguento mais, porra. Eu não aguento mais essa merda…” (Pausa longa. Recompõem-se.) Ele disse que era pra eu não procurar mais ele. É, ele disse isso e fechou a porta… A não ser que um dia eu precisasse de algo realmente importante, tipo um rim… Depois fechou a porta. (Pausa curta. Tom elevado.) “A sua chance de se vingar de mim por tudo que eu te fiz quando a gente era moleque e cê vai desperdiçar isso? Hein, cê vai desperdiçar isso?” (Pausa curta.) Depois a ficha caiu… Só depois eu fui entender que ele tinha conseguido. Naquele momento… Finalmente ele tinha se vingado de mim. Ali, naquela hora.
(Pausa curta.)
Um tempo depois chegou a notícia da morte dele. Parada cardíaca. Parece que ele tava empurrando um carro, tentando fazer um carro pegar no tranco e veio o baque…
Um pouco depois de ele morrer, a Alice me deixou… Ela não aguentou mais e resolveu dar um basta em tudo, depois que eu passei uma noite inteira removendo todos os tacos do chão da sala com as mãos, pra olhar embaixo, em busca daquilo que eu já não sabia mais o que era… Quando amanheceu, ela olhou pra tudo aquilo, as pontas dos meus dedos sangrando, daí ela juntou as coisas dela e foi embora levando a Foca.
(Pausa. Tom elevado.)
“Você quer liberdade, é, sua puta do caralho? Você quer se ver livre de mim pra ficar com ele, viver com as lembranças de um morto? Então vai, foda-se, some da minha frente, some dessa casa, eu não tô nem aí. (Pausa curta. Tom baixo, de derrota.) E quando o taxista perguntar pra onde você quer ir, diz pra ele “Ao que eu era antes”… Só não esquece de dizer isso pra ele: “Ao que eu era antes”… (Fingindo não se importar.) Vai, vai pra sua liberdade, volta pra ela. (Pausa curta. À plateia.) Todo mundo tem direito à liberdade nessa vida… Cês não acham? (Pausa. Num rompante, segue em direção à gaiola, agitado.) Se é assim, se todo mundo tem direito à liberdade na porra dessa vida, que que esse coitado tá fazendo preso aqui, então? Hein? Ele também tem direito à liberdade, não tem? Ah, eu acho que ele tem, sim. Claro que tem. (Abre a porta da gaiola e enfia mão dentro, sem descobri-la. Ouvimos o ruído do bater das asas.) Vem cá, vem, bonitão. Hoje você vai ser livre. (Ele pega o pássaro, bater de asas cessa. O rosto dele exibe esforço, veias saltadas, rubor. Ouvimos batidas na porta. Ele retira da gaiola sua mão cheia de sangue do pássaro esmagado. Aguça o ouvido. Pausa curta. Novas batidas. Avança e recua, indeciso. À plateia.) Minha filha?… Será que…? (Pausa curta. Novas batidas, seu rosto se ilumina.) Minha filha veio me visitar. É ela. (Pausa curta. Novas batidas. Ele passa a mão pelo cabelo e pelo rosto, sujando-se de sangue, sem perceber.) Minha filha chegou. Ela veio me visitar… Como é que eu tô? Cês acham que eu tô bem? A roupa. Cês acham que tá bom assim?
(Blecaute. Fim.)
Arte: A young girl kneeling by a bird cage while tending to her birds, de Jeanne-Elisabeth Chaudet.